Tal como falam, a inspiração surge quando menos se espera. Hoje, 23 de novembro de 2020, uma segunda-feira, quando começo a escrever estas linhas, entendo melhor essa frase.Tudo começou no último sábado. Tenho um pequeno canteiro no jardim de casa, e a minha calçada é daquelas com pedrinhas portuguesas, pretas e amarelas, todas com mosaico. Como a casa é antiga, daquelas casas grandes de bairro que já não se fazem mais, porque as famílias encolheram e muito, o rejunte que existia entre as pedras já se foi. E com a enorme quantidade de bem-te-vis, sabiás, pardais, rolinhas e maritacas que frequentam as imediações da minha casa, se empoleirando no pinheiro, no poste, nos fios e no telhado, começaram a crescer as mais diferentes ervas daninhas entre as pedras. Não que eu abomine o verde, mas ali ele está fora de lugar. E nessas épocas chuvosas, com o verão batendo a porta, faz-se necessário que eu coloque minha armadura e empunhe minha roçadeira para erradicar essas gramíneas da minha calçada. Só o grosso delas, claro. É impossível vencer a natureza, principalmente na forma de ervas daninhas enraizadas sob a calçada. A minha ideia apenas é que fique menos feio, e que não confundam meu modesto lar com uma casa abandonada.Então, quando me digladiava com as gramíneas, em um eterno e redundante processo de corta a grama, desmonta a roçadeira, puxa mais cabo, monta a roçadeira, corta grama, desmonta a roçadeira, puxa mais cabo, monta a roçadeira, corta a grama, lembrei de uma época que hoje parece tão distante, mas não parece que foi há tanto tempo. Nessa época, meus avós moravam em uma Usina, numa colônia de trabalhadores, e de tempos em tempos, os homens se reuniam com suas foices para aparar a grama dos jardins de toda a rua. Era praticamente um evento. Eu, criança, acompanhava com meus olhos curiosos aquele balé das foices, a sinfonia dos amoladores durante as pausas. Era lindo.E quando cortava a grama na frente da minha casa, eu, agora com mais de trinta anos, me lembrei de tudo isso. E como parece que a lembrança é um novelo, um fio puxou o outro. Vieram na memória as férias na Usina, as brincadeiras, os campinhos, as conversas. Coisas que provavelmente o Bento, meu primeiro filho (e espero que não seja o único), jamais verá. Crianças brincando nas ruas, adultos sentados de frente as casas sem muros. Era um tempo bom, onde eu me sentia livre. E quero que o Bento, e todos os meus filhos que virão depois dele, também sintam, mesmo que seja somente através destas letras cujo pai, que é engenheiro e não escritor, se arrisca a escrever para preservar suas memórias, para que a minha infância, e a de todas aquelas outras crianças, não suma nas brumas do tempo.Leia mais