O Novo Testamento não surgiu em um vácuo histórico de pensamento teológico e visões sobre o cosmos, a política e a natureza de Deus. Os autores dos documentos que, quase quatrocentos anos depois de terem sido escritos, foram agrupados em uma coleção que se tornou autoritativa para os cristãos, faziam parte de um ambiente de pensamentos e crenças que estavam em um fluxo continuo de desenvolvimento ligado ao passado. A forma mais visível dessa conexão com ideias anteriores é a relação entre as crenças que aparecem no Novo Testamento e as histórias do Antigo Testamento (ou Bíblia Hebraica). A continuidade entre essas duas coleções de escritos é bastante clara e conhecida.
Contudo, há algumas coisas no Novo Testamento que não são encontradas (pelo menos em sua forma mais completa e desenvolvida) no Antigo Testamento. Ideias como possessão demoníaca, exorcismo, batismo, expectativa do fim do mundo etc., parecem não ter uma relação tão imediata com os profetas, salmos e histórias da Bíblia Hebraica, e refletem um desenvolvimento muito avançado de temas que, se muito, aparecem apenas em seu estágio embrionário nos livros do Antigo Testamento. Essa impressão se dá pelo fato de que o fluxo de desenvolvimento do pensamento teológico do Antigo para o Novo Testamento está cortado por um espaço de vários séculos que é preenchido com uma literatura que não faz parte da Bíblia que a maioria das pessoas está acostumada a ler. Esses livros surgiram no período de tempo que liga os profetas do Antigo Testamento com os escritores do Novo Testamento, e apresentam uma teologia muito mais parecida com o que vemos nas epístolas e nos evangelhos: a literatura apocalíptica, com sua divisão entre demônios que dominam a Terra e anjos que trazem mensagens de Deus, sua narrativa de uma guerra cósmica entre Deus e o Diabo, sua visão sobre a opressão dos inimigos contra o povo escolhido e sua expectativa e esperança a respeito da iminente libertação de Deus, trazendo um reino de paz e vitória para a nação de Israel.
O objetivo deste pequeno livro é tornar o leitor consciente desse problema e chamar a atenção para a existência desse assunto que é de extrema importância para o entendimento do Novo Testamento. Eu não procuro forjar uma nova chave-hermenêutica para compreender a Bíblia. Este não é um exercício de teologia sistemática. O que busco aqui é uma breve contextualização histórica sobre um tema que permeava a mente daqueles que redigiram os documentos que foram canonizados tantos anos depois, na esperança de que algumas coisas ditas por esses autores sejam compreendidas em seu contexto histórico original.