Tributário das heranças ideológicas e organizativas das lutas de libertação nacional dos 1960, do marxismo maoísta e guevarista, do catolicismo progressista e do ativismo intercomunitário indígena, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) veio a público no levantamento armado de 1994 em Chiapas, no sudeste mexicano, como uma força política capaz de expressar o sintomático aparecimento de um novo conjunto de movimentos sociais antissistêmicos, cujos discursos e práticas se nutrem de dimensões pouco convencionais do uso do direito e da luta política não-estatal, corroborando uma perspectiva de emancipação que encontra ancoragem normativa na articulação entre uma certa ideia de dignidade humana e de autonomia. Com o presente livro, elaborado a partir de percepções etnográficas vivenciadas e amadurecidas durante o ano de 2008 em Chiapas, o autor analisa o significado do projeto e da experiência zapatista de autogoverno e seus desdobramentos políticos e sociais para a crítica (e a ação) democrática radical contemporânea, cultivando no horizonte a mobilização de um repertório conceitual que promove um diálogo entre as mais recentes perspectivas descoloniais e teorias sociais e políticas de corte libertário. O exercício de interpretação do experimento zapatista de autogoverno implicou na articulação de elementos pontuais e fragmentários da história social mexicana e chiapaneca sob uma visão sistêmica e de longa-duração, desaguando em uma descrição analítica do arranjo institucional rebelde e do autogoverno indígena centrado na reorganização das municipalidades zapatistas, operada com a formação das regiões autônomas batizadas como “Caracóis” em 2003. Com isso, espera-se contribuir na direção de uma reflexão sobre o significado da democracia que permita ultrapassar suas convencionais fronteiras estadocêntricas como “regime político”, situando-a no interior de um processo histórico e social mais amplo e representativo de uma das raízes constituintes do mundo moderno, ao mesmo tempo que lhe transborda. A democracia como autogoverno, nesse registro, se elabora como uma das mais consequentes e emancipatórias representações da transmodernidade ao figurar-se, simultaneamente, como valor, ética pública, modelo de ordem moral e arranjo de sociabilidades, podendo, portanto, ser localizada em distintas configurações, escalas e regiões da vida social.