Cuidado, frágil. Matei tem enredo delicado, de redes significantes que viajam no ritmo da associação livre, típica do delírio e do onírico. Se é a linguagem quem conduz ou seduz a personagem, se é a personagem quem seduz ou conduz a linguagem, quem poderá saber? A partir do desconcerto provocado pelo recebimento de uma carta misteriosa, uma mulher perde o centro, centrifugando-se, centrifugindo-se, talvez para talvez se encontrar.
“Não tenho base nem para tentar. Tentar, eu digo, adivinhar quantas voltas a centrífuga de uma máquina de lavar dá em dez segundos. Ou foi um minuto? Que ela já gira, já gira há dias, rodeia tanto que sai de si e entra em mim, me visita peito, cabeça, os buracos todos, zune na parte de dentro do ouvido, não fora. O tempo se estendeu como lençol sobre a cama, ergueu-se parecia fúria, força dos braços sem interferência de razões, golpe seco jogou para cima o lençol que fluf, alçou voo. Mas na queda, paraquedas lento, o corpo todo para na contemplação obrigatória do arco do lençol gordo. Quantas voltas a centrífuga deu no tempo, no tempo de eu ir até a cama, erguer e esperar o lençol se esparramar pelo chão do colchão é o que eu queria tentar, adivinhar.O gato tinha morrido, não tinha morrido. Queria ver na barriga dele o movimento peludo de lençol, ar debaixo do tecido da pele. O olho era capaz de me fazer ver subidas e descidas sob os pelos pretos. Mas olho engana, faz ver o que a gente quer, ver. O gato tinha sido centrifugado, pensei assim, tinha sido, como se forças ocultas o tivessem levado ao destino, ou como se ele se tivesse colocado em situação de centrifugação, voz passiva, eu podia falar o gato se centrifugou, e a fuga seria minha, eu estava saída do centro, eu estava de saída do centro, eu estava centrifugindo porque, eu sabia, tinha centrifugado o gado, digo, o gato, era eu, tinha sido eu. Mas não sou eu que estou centrifugando, eu centrifugindo, a carta era o que me fazia sair do eixo, que, melhor, me arrancou do eixo e quando a gente tenta ficar centrada mas algo nos empurra para fora, giramos e giramos, uma força empurra, a tentativa de ficar agarrada puxa, daí a gente gira, puxa, daí tonteia, daí pode morrer. O gato eu centrifuguei, mas como culpada se a carta me centrifuga? Se eu centrifuguei o gato e a carta me tirou do centro, sou culpada intermediária ou a culpa inteira cabe na carta, que causou a causa? (…)”
Este conto faz parte da Coleção Identidade. Saiba mais em www.amazon.com.br/colecaoidentidade